A Mudança #7





     Já tinha três caixas fechadas com o seu material de trabalho, quando verificou as horas no seu relógio de pulso, 18:18! Perfeito, pensa, agora vamos lá para essa nova vida
Passa pelo gabinete do Chefe para se despedir, deixa as caixas na portaria e após uma breve caminhada, chega às portas do bar onde era habitual tomar umas pints com o seu Colega.
Entra e quando se prepara para despir o casaco, depara-se com um pequeno grupo de colegas seus onde também se encontrava Jon, o seu Colega. Estavam todos de copo na mão e braço no ar a incentivá-la a juntar-se a eles.
De sorriso rasgado avança para a mesa e senta-se na cadeira vazia que lhe indicam. Vira-se para Jon e diz: 
- Bela partida me pregaste! Não estava nada à espera! - sorri, enquanto estende o braço para receber o copo de vinho que Jon lhe servia.
Jon sorri-lhe de volta e erguendo o copo na mão propõe um brinde:
- Bom, então agora que já temos cá a nossa desertora, brindemos! Saúde e sorte e aos novos começos!
- À nossa! - respondem em uníssono, fazendo os copos tilintar. 
- Bom brindei, mas sob protesto, não sou nenhuma desertora! Vou partir mas por necessidade de diversificar matérias e conhecimento, alargar horizontes, nada mais! - remata Eva, erguendo o copo e bebendo um gole.
- Acho que todos compreendemos isso - replica Jon - quando te apelidamos de desertora é apenas a nossa forma carinhosa de mostrar que vais deixar saudades! - inclina o copo num desafio a novo brinde.
- Exacto, não nos vamos esquecer de ti! - concorda Sérgio o colega da contabilidade.
- Obrigada, também não vos esquecerei! - Eva ergue o copo e brindam outra vez.
A música convidava à conversa. Não muito alta mas audível o suficiente para descontrair, variava consoante o dia da semana, à segunda-feira era blues. Assim, foram tagarelando sobre trivialidades e os desafios da vida enquanto bebiam o vinho.

      Um par de horas mais tarde já se encontrava descalça e refastelada no seu sofá. O dia fora longo, Jon dera-lhe uma boleia de carro e chegara rapidamente a casa. Como pesticara no bar sentia-se saciada e sem apetite, um pouco dormente do vinho mas contente por finalmente estar deitada a relaxar. 
Naquele momento esforçava-se por esvaziar a mente de problemas e receios, quando Cocas lhe saltou para cima da barriga e começou diligentemente o ritual de massajar com as patas antes de se deitar. Afagava com uma mão o pêlo macio de Cocas e este lá acabou por se aninhar. Assim, sem sequer dar por isso, adormeceu.

      Acordou horas mais tarde, ainda na mesma posição, com vontade de ir ao WC a alguma fome. Desviou o gato que permanecia imóvel a dormir e levantou-se. Dirigiu-se primeiro à casa-de-banho e depois à cozinha. Abriu o frigorífico e retirou um iogurte sólido de fruta, sumo de laranja natural e do armário oposto retirou uma caixa de muesliColocou tudo numa tigela e encaminhou-se de novo para o sofá. Ao pegar no comando da TV observou as horas, 2 da manhã! Já era tarde para insónias. Amanhã teria um grande dia pela frente, e estava com aquela sensação de que não voltaria a adormecer tão cedo. 
Comeu, ligou a televisão, fez um zapping rápido e deixou num qualquer filme que já havia visualizado mas que valia sempre a pena rever. Foi buscar o seu portátil e após alguns minutos scrooling nas redes sociais resolveu escrever. Escrever de si para si. Era um exercício que fazia com  certa frequência e que a ajudava a "exorcizar os fantasmas", como gostava de lhe chamar. 

«Tenho sérias dúvidas de ter feito a escolha acertada.
De certa forma é o que quero, mudar. Mas fica a incógnita se para melhor ou pior?... A matéria com que vou lidar é diferente mas o princípio básico é o mesmo. Calculo que não será complicado a readaptação e a aprendizagem de novas matérias, esse é o desafio. Onde estava tinha a vantagem de já conhecer toda a gente e o bónus de me dar bem com todos ou quase todos. Agora é o desconhecido.
Bom, não dramatizar, por favor! Afinal, dizem que a vida começa fora da nossa zona de conforto e é isso que eu estou a fazer, sair da zona de conforto! O resultado, positivo ou negativo, depende grandemente de mim! Então, sem receios abraça o desconhecido e conquista-o!...»

    Encostou-se para trás, inclinou a cabeça e fechou os olhos. Conseguia ouvir naquele preciso momento na TV o diálogo entre Al Pacino e Keanu Reeves em Devil's Advocate:
" Guilt is like a bag of fucking bricks. All you gotta is set it down... Who are you carrying all those bricks for anyway? God? Is that it? God? Well I tell you. Let me give you a little inside information about God. God likes to watch. He's a prankster. Think about it. He gives man instincts. He gives you this extraordinary gift and then what does he do? I swear, for his own amusement, his own private cosmic gag reel he sets the rules in opposition. It's the goof of all time. Look but don't touch. Touch but don't taste. Taste but don't swallow. And while you're jumping on one foot to the next, what is he doing? He's laughing his sick fucking ass off. He's a tightass. He's a sadist. He's an absentee-landlord! Worship that? Never!"

       Ficou a olhar para a televisão... aquele diálogo/monólogo, aquela interpretação, desde sempre a arrepiaram e não se cansava de as rever. Palavras fortes que a vaziam pensar*... nunca estaremos satisfeitos na nossa condição humana... há sempre algo mais a conquistar, mais um degrau para subir.... 
O filme acabara mas o seu estado de espírito não mudara. O relógio da sala indicava 3 da manhã, o melhor seria desligar tudo e tentar dormir mais algumas horas. Dirigiu-se para o quarto e deitou-se. Passados vinte minutos acendeu a luz e pegou no livro que tinha à cabeceira da cama. Da inscrição na lombada podia ler-se "Ulisses" e haviam lhe oferecido no Natal anterior. Ainda não tinha iniciado a tarefa de se deixar enredar por setecentas páginas de livro, seria desta?! Porque não? Acendeu um cigarro e começou a leitura...


(continua...)



Fazem também pensar a Autora que reformula a adjectivação de "um qualquer filme" para "um excelente filme"! Não poderei nunca desvalorizar tal filme, para mim icónico dos anos noventa.








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